3.3.10

[Ventos de Nordeste] Crónicas Russas


1. Vaalimaa, ou Crónica de uma fronteira

04/11

Lux Aeterna [A tensão que percorre toda esta composição espelha bem a sensação de inquietude com que se vive à sombra de um gigante adormecido - o vento não soprou, o sol absteu-se de brilhar com força, nem pássaros sobrevoaram aquele pedaço de terreno que separa dois países que trazem do passado um historial de domínio, guerra e paz armada]

Vindos de vários cantos do mundo, os estudantes da Hanken dirigem-se para Rautatientori com uma finalidade: às 13h30 deveriam estar a embarcar no autocarro que os levaria ao maior país do mundo. Lá chegamos e esperamos pelo nosso nome chamado em voz alta para que possamos embarcar; travamos conhecimento com o pessoal de Erasmus da Helsinki School of Economics (HSE) (os nossos rivais do outro lado da rua, a faculdade de economia para os finlandeses que falam finlandês) e perspectivamos uma longa viagem.

Uma vez dentro dos autocarros e já cada um com o seu passaporte devolvido (esteve nas mãos da agência de viagens para se pedirem os vistos), nada nos pára: seja o trânsito, sejam as centenas de quilómetros que temos pela frente, seja o sono de depois do almoço. Esses obstáculos são ultrapassados com a conversa que nos liga a novos amigos e reforça os já existentes, com as mais uma vez inconspícuas garrafas de Schweppes que apenas e seguramente levam água tónica que começam a circular entre filas, com o avolumar de expectativas quanto aos dias e noites que vamos passar e com a música que sai dos auscultadores de quem os leva. Pelo meio, um avistamento de inconfundíveis alces (pelo seu tamanho e volume comparados com os das pequenas renas), a espécie mais rara da paisagem finlandesa, traz algum exotismo à viagem.

Após algumas hora, o ritmo do autocarro abranda a uma escala inversamente proporcional ao que se passava dentro dele. À medida que nos aproximávamos da fronteira, mais e mais pessoas se iam levantando dos seus lugares para ver se vislumbravam ao fundo a tal separação entre dois países outrora inimigos, hoje em dia vizinhos cordiais na “entente cordiale” possível no Século XXI.



Após quase uma hora parados no trânsito muito perto da fronteira, e já com os múltiplos apelos e avisos da guia que nos acompanhava para que na própria fronteira não tirássemos fotografias e que nos mantivéssemos sossegados nos nossos lugares, a impaciência começava a propagar-se. O próprio condutor já tentava, em inglês, explicar que aquilo era normal, que se demorava muito tempo por causa das burocracias e necessidade de controlar todos os veículos em detalhe. Enfim, fartou-se de nós e do barulho que fazíamos e saiu do autocarro para ir falar, ele próprio, com os soldados a fim de perceber qual era a razão para tamanha demora.



Voltou, satisfeito, e com boas notícias. Iríamos pelas “traseiras” e assim fomos, escoltados por um misto de polícias e soldados, seguindo por uma estrada paralela até ao posto de controlo de passaportes e vistos. Afinal na Finlândia também há cunhas...

Começa aqui a segunda parte da aventura da fronteira: somos obrigados a sair do autocarro e deixar para trás todos as mochilas e bagagens; a próxima parte do trajecto faz-se a pé, munidos apenas com os nossos passaportes. O autocarro segue, com o seu mestre, para ser pesado - resultado que não deve diferir em muito do que apresentar à entrada no regresso - enquanto que nós seguimos pela “no man's land” onde devemos mostrar a um guarda fronteiriço finlandês o nosso passaporte com o visto que nos autoriza a entrar no gigante país. Atravessamos quase um quilómetro entre dois países e a sensação presente é que não pertencemos a países, nem a Uniões Europeias ou outras, mas sim que estamos agora à mercê da vontade política dos governos em não declararem guerra uns aos outros enquanto nos encontramos naquela minúscula fatia de terreno que, afinal de contas, não pertence a ninguém.

Chegados ao lado de lá, mas ainda não do outro lado, voltamos a entrar no autocarro, que já tinha cumprido os trâmites legais do lado finlandês da fronteira. Já havia escurecido, parecia que nos recebiam com a noite de propósito. Atravessamos momentaneamente uma aberta na floresta: a fronteira em si. Uma faixa que deve ter uns 15 metros de comprimento e que corta a direito as árvores de maneira abrupta mas precisa, como se de uma operação militar se houvera tratado. Ao meio, uma vedação. Electrificada, diz-se. Mortal para quem a atravessar sem permissão, seguramente - é o que deve passar pela cabeça de todos; a mim é. Imagino soldados camuflados de ambos os lados da vedação e com instrumentos de visão nocturna a patrulhar a floresta e olhando-se nos olhos, sempre com a tensão de quem vigia inimigos com quem se vive em paz. Paramos de repente: ouve-se a porta a abrir e entra um soldado, armado com uma Kalashnikov, para fazer o primeiro controlo do passaporte deste lado da fronteira. O seu uniforme e maneirismos são marcados pela simbologia de outro mundo: a estrela vermelha que se mantém na fronte da ushanka, o verde mesclado com o cinzento que será impossível de discernir na floresta escura de coníferas que nos envolve, o nome em letras diferentes, o olhar desconfiado de quem serve um país que nunca viveu em paz verdadeira. Tudo em ordem, ordem para prosseguirmos.

Ao fundo vê-se o posto fronteiriço do lado de lá, o qual se ultrapassarmos estaremos finalmente do lado de cá. Mais uma vez, saímos para que o nosso companheiro e meio de transporte seja pesado. Nós temos que mostrar uma vez mais o passaporte, mas desta vez é diferente. A tensão que enchia o ar desde que saímos efectivamente da Finlândia dobrou de intensidade e as conversas baixaram de tom. Organizamo-nos em filas indianas para que chegue a nossa vez de mostrar aos guardas fronteiriços que temos permissão para entrar no seu país. Dentro de um cubículo de madeira e vidro, o guarda vê o passaporte, confere o nome no visto escrito em alfabeto cirílico na variante russa e em alfabeto romano na segunda página do passaporte de cada um e compara a cara que tem à sua frente com a fotografia certamente antiga em muitos casos - o meu. Por trás e acima de nós, um espelho inclinado permite ver ao guarda as nossas costas, para que não haja a possibilidade de alguém passar de gatas - suponho - ou de levarmos uma arma escondida - continuo a supor. A mim, uma guarda fronteiriça com aspecto terrível de comissária política dos anos 80 na versão antiga do país a que quero aceder desconfia com o olhar natural dos eslavos do Oriente do meu longo nome e da sua transliteração para cirílico. Até porque no visto que vinha no passaporte nem todos os meus nomes constavam: faltavam justamente aqueles que eu havia, ingenuamente, escrito no visto de papel que nos distribuíram no autocarro e que devíamos ir carimbando de cada vez que mostrávamos o passaporte, tanto do lado de lá, como pelo meio, como antes de estarmos do lado de cá - uma confusão necessária, pois neste momento nenhum de nós se sentia verdadeiramente em lado algum.

E enquanto a minha entrada se jogava na confusão que durou alguns segundos, minutos para mim, na análise do meu passaporte, dei por mim a pensar que estes guardas não viviam realmente em lado algum também. Não os imaginava a acabar o turno perante a escuridão e o frio que reinavam lá fora na noite e ter que recolher à casamata onde passavam os dias do destacamento à fronteira. Será que eram rendidos e que durante a noite também se aceitavam pessoas nos dois países ou fecharia a fronteira nas horas mortas da noite? Lá me devolve o passaporte, sem me dirigir uma única palavra durante todo este tempo de especulações - deve ter visto a minha nacionalidade e com a típica resignação dos povos estrangeiros calculou que eram assim que se faziam as coisas noutros lugares e pensando de si para si na superioridade do seu povo em manter as coisas simples, até nos nomes que se dão aos filhos, continuo a supor.

Esperamos pelos que ainda têm que passar o mesmo processo; uma vez todos despachados fazemos menção de entrar no autocarro mas ainda não é desta. O condutor diz algo à guia que nos traduz que ainda falta fazer mais umas pesagens e medições apesar de este estar mesmo à nossa frente, parado e com aspecto já fatigado de tanta inspecção. É, finalmente, dada a ordem: podemos entrar e prosseguir viagem.

Duas horas, foi o tempo que demorou tudo isto. Duas horas para atravessar uma fronteira onde fomos controlados 3 vezes e mesmo assim existia o risco de não sermos aceites no país. Mas agora sim, após duas horas, podemos dizer que estávamos do lado de cá, do lado do maior país do mundo. A tensão no ar alivia-se um pouco mas mantém-se como um espectro. Chegáramos finalmente à Rússia.


2.3.10

[Ventos de Nordeste] Crónicas Russas

0. Prefácio, ou Palavras antes das (outras) palavras

Antes de virem as ditas crónicas, aqui segue uma pequena explicação.

Serve este conjunto de crónicas como relato (há muito adiado e devido) da viagem à Rússia, país de contrastes e exotismos, uma ilha em dois continentes num país que é em si um continente. Muito viajei e vi, muito ficará por escrever e descrever; por isso mesmo estas pequenas crónicas tentam capturar por palavras, sons e imagens a maneira como senti e vivi esses idos dias com algum detalhe mas sem precisão quanto a momentos, acções e reacções - apenas vagas ideias que reti e aqui exprimo.

Venham elas.